ÓRFÃOS DE PAIS VIVOS
É primordial refletir sobre o significado do dia dos pais para além de uma data comercial como tantas outras. Sou muito grata pelos aprendizados que tive na vida, mas não sei o que é ter pai. Como milhões de pessoas pelo Brasil e pelo mundo afora, fui abandonada pelo meu pai na infância, que não me registrou quando menor, ficando com o famigerado "não consta" no RG. Anos depois, ao tentar ajuizar ação para reconhecimento de paternidade, não tinha nem o endereço exato dele, tornando tudo muito complicado. Ninguém fica muito à vontade em abordar esse assunto, pois sempre que tentamos falar, desde crianças, nos acusam de que estaríamos fazendo "mi-mi-mi" ou nos fazendo de "vítimas", sendo que, por vezes, a pessoa apenas quer desabafar. A insensibilidade e a ignorância, infelizmente, imperam em muitas situações.
Pelo menos na minha época de infância, não existia qualquer sensibilidade em tratar desse tema nas escolas, no final dos anos 80, anos 90 e início dos anos 2000. Nas escolas públicas em que estudei, então, o descaso era completo. As crianças que não tinham pai precisavam "engolir o choro e calar a boca" nas apresentações, não existia muita tolerância por parte dos professores e diretores. Sofríamos uma espécie de bullying nas comemorações escolares do grande "dias dos pais", mas tínhamos que fingir estarmos "contentes" nos eventos do dia. Por vezes, na melhor das hipóteses, pedíamos a presença de avós, tios ou demais familiares, que muitas vezes também não podiam comparecer nessas apresentações escolares.
Fonte da imagem: https://poplembrancinhas.com.br/20-ideias-para-decoracao-de-dia-dos-pais/
O resultado disso é que, muitas vezes, ficamos com problemas psicológicos, depressão, ansiedade, entre outros fatores, mas, ironicamente, ainda somos "culpabilizados" por muitas pessoas ignorantes pelos problemas psicológicos advindos desse abandono paterno. É como se tivéssemos a obrigação ilusória de sermos de "aço". Tínhamos que ser quase "super - heróis" infantis, não podiamos sentir nada, nem falar nada, quanto mais questionar qualquer coisa. A absurda regra implícita era sofrer calado(a). A pessoa, no ditado popular, tinha (e ainda tem) que "se virar" para superar o grande trauma do abandono paterno, que a insensibilidade coletiva muitas vezes trata como se não fosse nada.
Tomara que as coisas realmente tenham melhorado nesses últimos anos, pelo menos um pouco, sobretudo no modo como as escolas encaram esse assunto. O fato é que somos uma legião de milhões de órfãos de pais ausentes, omissos ou negligentes. Estive pensando nesse tema enquanto lia o seguinte trecho de um artigo publicado pelo jornal Metrópoles, adiante citado:
"No total, são mais de 5,5 milhões de adultos que nunca tiveram o reconhecimento do progenitor. O dado alarmante é ressaltado quando, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 12 milhões de mães chefiam lares sozinhas, sem o apoio dos pais. Destas, mais de 57% vivem abaixo da linha da pobreza." Fonte: https://www.metropoles.com/brasil/dia-dos-pais-pra-quem-com-80-mil-criancas-sem-pai-abandono-afetivo-cresce Sim, somos uma legião de órfãos de pais que não assumiram sua mínima responsabilidade, gerando abondono afetivo. As mães continuam sobrecarregadas e constantemente culpabilizadas até pelo maus comportamentos dos homens. A tolerância é muita seletiva pelo cinismo social. Por erros muito menores, uma mulher já sofre bastante crítica e julgamento. Agora, um fato tão pesado quanto milhões de pais que abandonam filhos não tem o tratamento que merece. Ainda que existam vários métodos anticoncepcionais, tanto o homem como a mulher devem assumir sua responsabilidade, mas muitos marmanjos simplesmente não gostam de usar preservativo e põem a culpa nas mulheres, como sempre. O cinismo e a hipocrisia beiram o absurdo, subvertem a lógica e desafiam qualquer senso mínimo de humanidade.
Nessa sociedade machista, tudo acaba sendo jogado como "culpa" da mulher. O fato de um pai ter abandonado o próprio filho também é, muitas vezes, cinicamente atribuído como suposta "culpa" da progenitora: uma desculpa esfarrapada que, se colar no raciocínio limitado de muitos hipócritas, simplesmente "colou". De qualquer modo, crescer sem pai é um fardo bastante complicado e extremamente pesado para as crianças, digo isso por experiência própria. É importante a honestidade em tratar esse tema, pois nossos sentimentos são constantemente invalidados, fugindo da real importância e do grande impacto que o abandono gera na vida das pessoas. Essa tendência de negar ou reprimir emoções gera muitos sofrimentos, doenças, conflitos, violência e vários outros problemas cotidianos.
É claro que podem existir outras figuras paternas. Mas fica no inconsciente da pessoa que passou por abandono uma profunda sensação de desamparo e um grande abalo na auto-estima, que, honestamente, são fatores difíceis de serem digeridos e superados, ainda que com a melhor das intenções. A pessoa é cobrada a ter que se "virar" para ficar bem por conta própria, porque, no fundo, quase ninguém quer saber.
Anos depois, trabalhando na área jurídica, é triste ver tantos processos de pais fugindo de pagarem o mínimo de pensão alimentícia aos filhos. E muitos atrasam as pensões por meses e só pagam quando estão na iminência de serem presos. Brigam para reduzir pensão de R$ 200 ou R$ 150,00, que mal sustentam o básico da alimentação dos menores por alguns dias. Mas ainda posam de "bons pais de fins de semana" no Instagram ou em outras redes sociais. Chamam as mães de "interesseiras", mas a pensão miserável que pagam, na maioria dos casos, não sustenta nem alguns dias de mercado, deixando a grande parte das despesas e cuidados dos menores para os avós e outros familiares.
São milhões de pessoas abandonadas pelos pais, o que é um grave problema social sem a devida atenção e cuidado. Não se admira que isso se explode em violência pelas grandes injustiças que são acumuladas sem providências eficientes. Mudar essa situação demanda diálogo, abertura, compreensão, cuidado, mudança de mentalidade, melhores serviços sociais, entre vários outros fatores, que provavelmente ainda levarão muitos anos para melhorarem em termos efetivos.
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