A GOTA D'ÁGUA
Juliana S. Valis
“ A História registrará o brilhantismo de Sílvia Vaz Toledo, porque ela soube transformar uma realidade do mundo. ” – Seria um bom começo para a sua biografia, não é senhora Sílvia ? - Perguntou o jornalista Daniel Marks.
- Não, eu simplesmente soube perceber o óbvio. Não há brilhantismo algum nisso. Hoje estamos em 2054, mas em 1954 alguém poderia ter percebido a mesma coisa, Qualquer um poderia ter feito o mesmo, fosse um João, um José ou uma Maria. Nenhuma história interessante registaria que fulano de tal percebeu, em determinado momento, que o fogo queima. Tal constatação soaria evidente demais e até mesmo ridícula. Em geral, as pessoas só se preocupam com o óbvio diante de circunstâncias extremas e imediatas. Se, por exemplo, um amigo dissesse a outro que o fogo arde e destrói, provavelmente o interlocutor não daria a menor relevância para tal afirmativa. Mas, se o mesmo amigo comunicasse ao outro que sua casa está sendo incendiada neste exato momento, a afirmativa de que o fogo queima não mais teria uma conotação trivial ou ridícula, e sim um sentido sensivelmente dramático, catastrófico, desesperador. Desse modo, a preocupação com certos fatos, considerados óbvios, só se manifesta na maioria das pessoas quando elas se vêem diante de situações bastante sérias e desastrosas.
- Não estou entendendo aonde a senhora quer chegar ...
- Esse é o fundamento de toda a minha história, Daniel Marks. Eu me preocupei profundamente com o óbvio, em uma época na qual o óbvio era facilmente substituído por preocupações mais momentâneas, mais efêmeras e urgentes. Quando olho para trás, não sei se este foi o meu maior defeito ou minha maior qualidade: a preocupação com o evidente.
- A senhora fala de forma bastante enigmática e evasiva...
- Você entendeu o que contei sobre fogo, Daniel ?
- Um pouco.
- Então troque o fogo pela água e entenderá também a minha história.
Daniel ficou inerte por um instante. Era a primeira vez que ele se encontrava diante de Sílvia Vaz, proprietária da maior fornecedora mundial de água potável , a SOW. O jornalista tinha preparado uma série de perguntas que seriam úteis à narrativa biográfica de Sílvia, mas não contava com o tom metafórico daquela mulher. Após alguns segundos de silêncio, Daniel retomou o diálogo.
- O que a senhora entende como óbvio ?
- O óbvio é qualquer certeza que nós temos na vida. Eu, por exemplo, sempre tive a convicção plena de que a essência humana é composta por alma e água. Carne e osso formam apenas matéria bruta, passível de putrefação. E se a água é algo integrante e imprescindível do ser, obviamente a água é sinônimo de vida. Foi essa constatação óbvia que me fez fundar a SOW, sigla de Save Our Water, em trocadilho a Save Our Soul. Afinal de contas, se salvássemos nossas águas, estaríamos salvando também nossas almas, de certa forma...
- Como a senhora descobriu essa relação tão intrincada entre alma e água ?
- Vou lhe contar, mas não quero por isso ficar conhecida como a profetisa do apocalipse.
Daniel soltou uma estrondosa gargalhada. Sílvia iniciou o relato de suas experiências e dos enigmas de sua vida . Quando era criança, costumava passar as férias na fazenda do avô. As festas de fim de ano sempre reuniam toda a família nesse ambiente rural e foi em uma dessas ocasiões que ocorreram fatos de grande repercussão em minha vida. Meu avô possuía não sei quantos mil hectares de plantações e havia também em seu latifúndio uma belíssima lagoa de água cristalina. Não raramente, eu ficava bastante admirada com toda aquela extensão de área verde e costumava ver vários helicópteros passando sobre as plantações. Com freqüência, eu indagava ao olhar os helicópteros:
- Que é isso, vovô ?
- São pássaros gigantes, Sílvia. Eles lançam sobre as plantas gotas milagrosas que matam as pragas do campo.
Em minha tenra infância, eu não sabia que as tais gotas lançadas por aqueles pássaros voadores não só matariam as pragas do campo, mas também os animais predadores das pragas e até os peixes habitantes da lagoa. Eu tinha apenas seis anos. Naquela época, o mundo estava entretido com as olimpíadas em Barcelona, com o esplendor da tecnologia e da informática. Divulgou-se também nessa época uma conferência sobre meio ambiente, realizada no Rio, mas meu avô e milhões de outras pessoas nem sequer tiveram idéia do que isso representava. E o vovô nunca abriu mão de suas gotas milagrosas.
À medida que fui crescendo, percebi que a lagoa da fazenda tinha as águas cada menos límpidas e cristalinas. Com o passar dos anos, todos que bebiam daquelas águas passavam mal. Inclusive houve a internação de minha irmã mais velha e de três peões da fazenda, em virtude de terem comido peixes tirados dali. Confesso que fiquei muito triste por conta disso. Lembrava-me de que não mais poderia nadar naquela lagoa, nem pescar, nem nada. Sobre tal fato, meu avô dizia:
- É o progresso, Sílvia.
Eu já tinha completado quinze anos, mas desconhecia completamente o significado catastrófico dessa palavrinha traiçoeira. Progresso seria sinônimo de destruição ? Por séculos, pareceu-me que sim. Mas, diante disso, o homem só não contava com a revanche da natureza. Meu avô, por exemplo, jamais imaginava que sua fértil plantação fosse um dia ser corroída por uma chuva tão ácida e avassaladora quanto a sua ganância desenfreada.
E aquela linda lagoa, batizada por minha avó com o nome de Espelho d’Alma, transformou-se em algo tão fétido e asqueroso como o rio Tietê. Hoje sinto o tanto que essa lagoa marcou minha vida. Foi por meio dos reflexos do espelho daquelas águas que a cada ano eu me via crescer, como se fosse uma espécie de rito narcisista. E mais: eu consegui estabelecer uma proporção direta entre a poluição das águas e a poluição das almas. Em minha imaginação fértil de menina pensativa, quanto mais o espírito estivesse calmo e compassivo, mais a água estaria limpa e transparente. Assim, quanto mais as pessoas estivessem com a alma eivada de cobiça e sujeira, mais as águas estariam poluídas. Deduzi que a poluição da alma e da mente sempre antecedia a contaminação da água ou de qualquer outra coisa. Dizem que os olhos são os espelhos da alma. Apesar de não ver equívoco nessa afirmativa, ousaria dizer que a água também é um excelente espelho da alma humana.
Quando eu tinha dezesseis anos, meus pais excepcionalmente decidiram não passar as férias na fazenda de meu avô, no interior de São Paulo. Fomos para o litoral, para aproveitar o sol e a beleza das praias. Infelizmente, o mar estava também bastante poluído e não era raro encontrar garrafas e outros vasilhames boiando em meio às ondas. Mais tarde entendi que o mar já não servia só para a diversão dos surfistas e dos navegantes, mas também como esgoto de algumas cidades. E em uma noite dessa viagem, eu não conseguia dormir. Havia uma torneira pingando no banheiro do quarto de hotel onde estávamos hospedados e aquela cadência de gotas d’água simplesmente havia me tirado o sono. Crescia uma ânsia tão grande em mim que até hoje não sei descrevê-la bem . Por um breve momento fechei os olhos e, em vez de contar carneirinhos, comecei a contar a quantidade de gotas que caíam da torneira.
Perto da 922ª gota, apareceu-me a imagem de um deserto. Não sei se um deserto tão grande como o Saara, mas um deserto diferente, enigmático. Apareceram-me miragens, como camelos e dromedários voadores, despejando gotas milagrosas que transformavam a areia quente em água gelada. Mas quando me aproximei para beber daquelas águas, vi refletida na poça uma imagem que não era minha. Eram imagens distorcidas, confusas. Imagens de um mundo frenético e desolado, no qual as pessoas se digladiavam por míseras gotas d’água. Gotas essas que eram lágrimas de criancinhas perdidas naquele grande alvoroço. Essas criancinhas me chamavam de mãe. Não sei como Freud interpretaria esse pesadelo, até hoje não consegui interpretá-lo satisfatoriamente. Só sei que tais imagens me repugnaram de tal forma que soltei berros avassaladores:
- Fechem essa torneira ! Um dia vamos chorar amargamente por todas as gotas d’água que desperdiçamos ! Fechem essa porcaria de torneira !
- Que é isso, minha filha? Pare de gritar, Sílvia !
Desde aquele dia, nunca mais parei de gritar. Não podia mais conter o grito que estava há tempos sufocando a minha alma. Aquele sonho foi a gota d’água. Idealizei um organização não governamental que se chamaria Save Our Water e que seria destinada à conscientização sobre o uso adequado e sustentável das águas. Estudei a fundo o assunto. Apresentei um projeto a respeito de métodos de preservação aquática na feira de ciências do colégio, mas pouquíssimas pessoas tiveram paciência de ouvir toda a minha explicação mirabolante sobre reciclagem de águas do esgoto, por exemplo. O stand que chamou mais a atenção tratava dos efeitos dermatológicos da depilação com cera quente. E apenas um garoto teve a curiosidade de escutar todos os meus devaneios técnicos. Seu nome era Renato, meu grande sócio nos negócios e no amor.
Penso que o nosso elo inicial foi o fato de sermos constantemente rechaçados pela “turma”. Nessa altura do campeonato, eu já era conhecida como a insuportável garota aquática, em virtude de todas as minhas campanhas em favor do uso racional da água. Frequentemente, eu distribuía panfletos de papel reciclado na porta da escola, com orientações práticas sobre como economizar água em casa, tomando banhos rápidos , por exemplo. E, logo depois, eu via esses panfletos todos no lixo. Tentei realizar também palestras sobre tal questão, mas ninguém me dava ouvidos. Com isso, fui chamada de chata, tanto em casa como na escola. Colocaram-me diversos apelidos, que eu levaria aqui horas relatando.
Renato também era um discriminado no colégio. E isso se dava por vários motivos: era considerado feio, cdf e lunático. Era o melhor aluno em matemática, porém passava as aulas inteiras desenhando ou dormindo com a boca aberta. Na realidade, ele era uma espécie de autodidata que detestava ser visto como superdotado.
Conhecemo-nos melhor a partir daquela feira de ciências já mencionada. Ele me pediu permissão para desenhar todos os aparelhos que eu havia idealizado como bons mecanismos de economia de água. Eu achei magnífica essa idéia. E desde então iniciamos longos projetos insólitos, tais como uma descarga doméstica que economizaria até dez litros d’água por uso e chuveiros cronometricamente adaptados que desligariam de modo automático após cinco minutos de um banho... Essas eram apenas algumas de nossas centenas de idéias mirabolantes. Muitos as rotulavam como extremamente infantis e improfícuas .
Após esses tempos de colégio, eu e Renato começamos a cursar Engenharia na mesma universidade. Ele estudava Engenharia Mecatrônica. Eu era estudante de Engenharia Química. E foi nessa época que surgiram nossas idéias mais fecundas. Um dia enquanto saímos da faculdade, ele chegou a comentar comigo:
- Imagine, Sílvia, como seria bom ter uma máquina de fabricar água que pudesse abastecer grande parte do mundo...
- Água fabricada com todas as propriedades químicas de água natural ?
- Sim.
- Isso é uma loucura. É algo impossível.
- Não, Sílvia, nós precisamos usar a tecnologia em favor da humanidade. Não foi você mesma que disse ?
Renato acabara de ter uma grande inspiração. E passamos quatro longos anos ocupados com essa idéia de criar água. Tínhamos esse projeto em completo sigilo. Lembro-me dos finais de semana, feriados e das madrugadas em que eu ficava horas seguidas dentro de um laboratório, tentando produzir água artificialmente. Para tanto, já havia tentado diversos mecanismos. Em virtude disso, minha família me chamava de alienada e muitas vezes minha mãe chegava a implorar:
- Pare com essa maldita obsessão, minha filha !
De fato, houve momentos nos quais eu realmente desejei parar com aquela obsessão, mas já era tarde demais. E foi em um desses dias de cansaço que ocorreu o triunfo: a uma dada temperatura e pressão, consegui fundir moléculas de hidrogênio e de oxigênio na proporção de duas para uma. Fiquei em um estado de profundo êxtase. Essa sensação no fundo diz mais do que mil explicações técnicas sobre o assunto.
Renato ficou eufórico ao tomar conhecimento da notícia. Ele construiu todo o aparato necessário para uma boa fabricação de água , aparelhagem essa que tinha o aspecto de um grande filtro. Tal máquina foi batizada de BWM (Best Water Machine), um anagrama que Renato fez com a sigla BMW, em analogia à opulência e à sofisticação do tão cobiçado carro.
A BWM foi construída bem perto de minha formatura. Era essa uma época em que os reservatórios de água de muitas cidades do Brasil já estavam baixos. Divulgavam-se por todo o país campanhas de economia de água a partir de mudança de hábitos, coisa que eu já vinha fazendo oito anos antes. Temia-se como nunca um colapso no fornecimento de água potável. E em um país como o Brasil, no qual a fartura de recursos naturais sempre foi propalada, entender de uma hora para outra que a água para consumo tornara-se escassa era algo assustador e inacreditável.
De certa forma, boa parte do mundo já vinha enfrentando esse problema. Os países mais ricos utilizavam há tempos técnicas bastante sofisticadas de dessanilização de águas marinhas, como Israel. Outros países investiam maciçamente em reciclagem de águas do esgoto. Enquanto isso, a água tornava-se cada vez mais cara, a ponto de ser designada por alguns estudiosos como o “ouro incolor”. A esse respeito, era freqüente dizer-se que a água no século XXI seria equivalente em termos econômicos ao petróleo no século XX . Eu sempre discordei dessa afirmativa. Viver sem petróleo podia até ser bastante complicado no século XX, mas viver sem água é algo praticamente impossível em qualquer século .
Perdoe-me essa pequena digressão, mas eu necessitava desse contexto para agora explicar como surgiu formalmente e se solidificou a SOW. Logo após nossa formatura, Eu e Renato resolvemos concretizar nossas aspirações em relação à água. Juntamos um pequeno capital, alugamos um porão de uma velha casa e resolvemos investir nas BWMs, para a atingirmos uma razoável produção daquela tão preciosa substância líquida, imprescindível à vida. Em princípio, nada comuniquei à minha família sobre a SOW. Tive medo de ser desestimulada. Somente dois meses após a inauguração, dei a notícia aos meus familiares. A primeira reação de todos foi a de não acreditar. Meu pai ficou atônito:
- Você tem máquinas de fazer água, Sílvia ? Isso e incrível ! É uma verdadeira máquina de fazer dinheiro !
De fato, a SOW expandiu-se ilimitadamente em apenas dez anos. Começamos fornecendo água gratuita a todos aqueles que nos procurassem em momentos de extrema necessidade. Com o tempo, porém, esse procedimento se mostrou totalmente inviável, pois todos já estavam bastante necessitados de água e era impossível fornecê-la a todos, por mais que quiséssemos. Assim, a SOW passou a vender água potável por um preço baixo e com isso conquistamos milhares de clientes em todo o Brasil. Foram abertas filiais em quase todas as grandes cidades brasileiras, exceto em algumas do norte do país. Também era exportada grande quantidade de água pela SOW e foram inauguradas filiais em mais de oitenta países, nos cinco continentes. Enfim, a SOW tinha adquirido a feição de uma multinacional gigantesca.
Mas nem tudo eram flores para a SOW. Fomos acusados pela Organização Mundial do Comércio de praticar dumping . As organizações de proteção ao meio ambiente nos chamaram de mercenários e a mídia não nos dava trégua. Os jornais virtuais traziam inúmeras críticas à SOW, com alegações como a de que o nome da empresa deveria ser SOM, Save Our Money. Tudo isso magoava profundamente a mim e ao Renato. Afinal de contas, noventa por cento de nossos bilhões de waterdólares eram destinados à confecção de plásticos biodegradáveis, eletrodomésticos econômicos em termos de água etc. Além disso, patrocinamos muitos projetos de preservação das águas pelo mundo.
Como se não bastassem todas essas calúnias, enfrentávamos ainda uma contínua espionagem ilegal na matriz e nas filiais da SOW em busca de serem descobertas as condições químicas de nossa fabricação de água. Para conter esse problema, redobramos a instalação de microcâmeras em todos os nossos estabelecimentos e demitimos cerca de mil empregados envolvidos em uma extensa rede de propina.
Mas o pior ainda estava por vir. Um acordo entre os oito países mais ricos do mundo estabelecia uma ocupação da Amazônia caso a SOW não lhes cedesse em três dias a patente das watermachines . Apesar de já terem furtado não sei quantos milhares de metros cúbicos de água brasileira, tais países não deixaram de nos pressionar. Tal caso entrou para a História como “a chantagem do milênio” . Renato não queria ceder de forma alguma a essa pressão. Eu confesso que cheguei a titubear nesse aspecto, pois temia a violência que poderia ser empregada nessa invasão geopolítica.
No dia seguinte a toda essa barganha, encontrei uma mensagem que Renato havia deixado em minha agenda eletrônica. Ele dizia que jamais venderia sua alma a quem quer que fosse. E desde esse dia ele está desaparecido. Com isso, fiz uma contraproposta a todos os países que me chantageavam. Ofereci a patente das BWMs e um bilhão de dólares a todos esses países, caso Renato fosse encontrado. Já faz dez anos que tal episódio ocorreu e, até agora, nem sequer há vestígios de Renato.
- Mas por que a senhora fez a proposta de ceder as patentes ? – Perguntou o jornalista Daniel Marks após ouvir toda aquela narrativa.
- Porque as watermachines somente funcionam com oxigênio e hidrogênio puros, que já estão escassos. Mas eu.... Eu já estou criando uma máquina de fazer oxigênio e hidrogênio. Vai se chamar hidroximachine. Afinal, no fundo somos apenas H2O e alma...
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Juliana Silva Valis
Enviado por Juliana Silva Valis em 20/02/2007
Alterado em 12/05/2011