PARANÓIA DA ESPERTEZA OU MISTIFICAÇÃO DA ÉTICA ?
Juliana Silva Valis
Logo após a Semana de Arte Moderna de 1922, o escritor Monteiro Lobato publicou uma ferrenha crítica à pintura de Anita Malfatti por meio do artigo designado “paranóia ou mistificação?”. Em tal artigo, o autor referido atacava basicamente os contornos “disformes” da arte modernista, em contraponto ao que ele considerava excelso na técnica da arte clássica. Mais de oitenta anos se passaram desde aquele fatídico episódio e a crítica de Monteiro ainda enseja uma série de reflexões profícuas, nem tanto atreladas à arte de pintar quadros, mas, sobretudo, à arte de eleger governantes. Sim, o voto, em tempos hodiernos, deixou de ser apenas um direito, ou um dever, para se transformar em uma espécie de “oitava arte”, consistente na árdua tarefa de conferir mandatos a pessoas que sejam realmente íntegras na gestão dos bens públicos. O grande problema da política brasileira, nesse sentido, é que a aludida “arte do voto” se tornou refém de dois monstros da democracia: a “paranóia da esperteza” e a “mistificação da ética”.
É bastante simples compreender a essência dos dois termos referidos, mesmo porque exemplos não faltam para esse objetivo. Preliminarmente, torna-se oportuno salientar que o vocábulo “esperteza” tem assumido conotações bastante problemáticas na sociedade brasileira, influenciando os grupos mais humildes até os mais abastados. Nesse sentido, alguns empresários se dizem “espertos” por sonegarem tributos, alguns traficantes se dizem “espertos” por corromperem a polícia, outros indivíduos se dizem “espertos” por roubarem pequenas ou grandes somas de dinheiro, e assim se configura uma particularíssima “república dos espertos”. Anônimos ou famosos, aplaudidos ou execrados, os “espertos” aderem de modo nocivo ao que sociólogos como Roberto da Matta designaram de o “jeitinho brasileiro” ou, em termos mais patológicos, a “paranóia de se querer levar vantagem em tudo”. Embora não se saiba ao certo o que ocasiona essa doença coletiva, o fato é que ela tem se mostrado tão perniciosa a ponto de poder ser descrita como um verdadeiro câncer social, destruindo células e órgãos de toda uma democracia. Talvez nem Freud ou Jung conseguissem explicar com minúcias a referida “paranóia da esperteza”, mas compreendê-la e combatê-la tem se mostrado tarefa tão imprescindível quanto a contenção da gripe aviária. Assim, necessita-se urgentemente de um antídoto cuja fórmula inocule honestidade nos milhões de “espertos” que ultrajam os interesses públicos, em nome de interesses privados, muitas vezes espúrios e criminosos. Se houvesse um tratamento psiquiátrico efetivo para a “paranóia da esperteza”, poder-se-ia afirmar com certa probabilidade que escândalos de corrupção, shows de mensalões e seus congêneres seriam páginas viradas na história da política brasileira.
Companheira da “paranóia da esperteza”, a “mistificação da ética” é a outra grande vilã que macula a arte de se votar bem. Em meio a tantos ultrajes à República, a ética tem constituído verdadeiro mito no contexto político e social, como se fosse um mero devaneio filosófico, e não uma obrigação concreta ou constante. De fato, não é necessário ser um grande filósofo para se verificar o modo pela qual o conteúdo ético das práticas políticas vem sendo mistificado no Brasil e também em outros países. Quando um parlamentar recebe propina ou quando um comerciante não emite nota fiscal, ambos sabem que estão agindo em detrimento do interesse público, ainda que não tenham conhecimento sobre qualquer teoria religiosa ou filosófica sobre práticas morais. Assim, o grande empecilho de se mistificar a ética, tornando-a demasiadamente abstrata e inalcançável, é permitir que ela constitua exceção em um mundo cada vez mais destrutivo e complexo. No momento em que se mistifica determinado conceito, portanto, cai-se na armadilha de torná-lo excessivamente vago, nebuloso e, por conseqüência, impraticável. Desse modo, para se desmistificar a ética, é necessário praticá-la efetivamente, entendê-la como fato concreto e assumi-la como atitude cotidiana. De que adianta o seu Joaquim da padaria criticar a prefeita que desvia verbas públicas se ele mesmo sonega imposto ou vende produtos com validade vencida ? Desde quando a falta de ética por parte de alguns pode justificar a conduta ilícita de outros ?
O pensador e filósofo alemão Imannuel Kant, ao tratar sobre o tema da moral, em sua “Fundamentação da metafísica dos costumes”, escreveu que cada pessoa deveria agir de tal forma que o preceito de sua ação pudesse se transformar em lei universal. Se uma pessoa, por exemplo, não pode converter os atos de matar ou de roubar em imperativos universais, então tais atos não são éticos nem socialmente recomendáveis. Ademais, Kant frisou a idéia segundo o qual os seres humanos devem ser considerados fins em si mesmos, e não meros objetos para se alcançar finalidades alheias. Tais concepções kantianas, bem como outras idéias filosóficas, podem ser úteis tanto para se combater a “paranóia da esperteza” quanto para se evitar a “mistificação da ética”. Se cada político ou cidadão brasileiro agisse buscando transformar seu ato em lei universal, provavelmente não existiriam tantas comissões parlamentares de inquérito no Congresso, nem tantos processos criminais abarrotando os fóruns, nem tantas atitudes de improbidade.
Se houvesse uma semana de arte pós-moderna no Brasil, noventa anos após o célebre evento modernista de 1922, talvez pudéssemos focalizar melhor o aperfeiçoamento da “oitava arte” em todo o país. Contudo, a “arte de agir bem” não pode ser apenas exposta em museus ou teatros municipais. Essa arte deve ser efetivamente praticada por todos os brasileiros que queiram pintar um novo quadro nacional, sem a “paranóia da esperteza” e a “mistificação da ética”. Caso contrário, será bem melhor transferir o nosso “sítio do pica-pau amarelo” para outro planeta do sistema solar. De preferência, Júpiter.
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Juliana Silva Valis
Enviado por Juliana Silva Valis em 20/01/2007
Alterado em 04/04/2012