por Juliana S. Valis
Laura estava há mais de vinte minutos concentrada em sua tarefa escolar. Seus pequenos colegas de classe já haviam terminado a última redação daquele ano letivo, e a professora já estava na iminência de iniciar a apresentação dos trabalhos. Pressionada pela rapidez das outras crianças, a garota escreveu celeremente as duas últimas frases de sua composição, cujo tema era a expectativa para o dia do natal, com um pequeno desenho ilustrativo daquela data. Ao perceber que os alunos já estavam ociosos, a professora decidiu chamar cada criança para expor seu trabalho aos demais, solicitando algum voluntário para o início das apresentações. Um menino muito agitado ergueu prontamente sua mão e logo se dirigiu à frente daquela terceira série, para falar sobre seu trabalho, com uma certa ironia e objetividade lúdica:
- Bom, como papai Noel não existe, escrevi uma carta direcionada logo aos meus próprios pais, pedindo um super computador, que eu desenhei bem grande aqui no papel, olhem...
- Ei, quem disse que papai Noel não existe ? – Interrompeu outro garoto, sendo logo alvo das risadas dos colegas, num escarcéu tão barulhento que até despertou as crianças mais sonolentas, naquela manhã chuvosa de dezembro.
- Meninos, podem parar agora com essa bagunça ! – Repeliu a professora. – Vamos continuar, Pedro Henrique, você é o próximo. Pode vir aqui para falar sobre sua redação.
- O presente que eu quero de natal é um video-game muito bom, de preferência um Playstation 3 com os melhores jogos ou, então, aquele Nintendo Wii, super maneiro, como eu desenhei aqui no papel, olha que legal ! Eu não escrevi muito não, professora, mas o desenho ficou muito bom...
- Tudo bem, Pedro Henrique, pode retornar à sua carteira. A próxima é a Melissa, que já estava com a mãozinha levantada; e silêncio, gente, vamos ouvir a colega !
- Na minha redação, eu pedi um daqueles "IPhone", que tiram fotos, baixam músicas e vídeos, filmam, acessam a Internet, têm jogos muito legais, agenda eletrônica, despertador, calculadora...
- Melissa, concentre-se no que é mais importante na redação. – Interrompeu a professora. – Vocês só estão escrevendo sobre produtos, crianças, eu pedi um texto sobre o que significa a data do natal, entendem ?
- Ah, sim, professora... Eu também não acredito mais em papai Noel, minha irmã mais velha me disse que ele nunca existiu. E como minha irmã já tem um celular motorola V8, meu pai me prometeu que eu também ganharei um, no dia do natal, com capa rosa da Hello Kity ou, então, com aquelas capinhas muito legais que eu vi um dia no shopping lá perto de casa e...
- Está bom, Melissa, já entendi. – Disse a professora, um tanto quanto perplexa. – Pode retornar ao seu assento.
- Professora, eu posso falar agora ?
- Claro, Sarah, venha aqui.
- Como fui bem comportada no ano todo, com ótimas notas, meus pais me disseram que eu poderia escolher um presente bom. Então escolhi uma grande casa de bonecas, bem completa mesmo, com um mini-computador da Barbie, sala de estar, e até uma pequena academia de ginástica, com bicicletas “gonométricas”...
- São “ergométricas”, Sarah, bicicletas “ergométricas”. – Corrigiu a professora, sob os risos da turma. – Gente, silêncio, por favor, eu não quero reprovar ninguém. Quem será o próximo a falar sobre o trabalho ?
- Eu posso ler minha redação completa, professora ? – Perguntou a aluna Laura, apesar de sua timidez, levantando-se da cadeira.
- Muito bem, Laurinha, pode vir...
- Bom, eu escrevi assim: “para o dia do natal, pedi a Deus um grande presente. Não quero nada caro, porque meu pai não pode comprar. Quero que minha mãe acorde de um coma e volte à vida normal. Ela foi acidentada há dois meses, no trânsito, por culpa de um indivíduo que dirigia bêbado, em alta velocidade, e bateu no carro dela. Toda a família ficou muito assustada quando soube do acidente. O médico disse que minha mãe perdeu muito sangue e poderia ter falecido, mas ela ainda estava respirando, apesar de inconsciente. Vi meu pai chorar pela primeira vez, em casa, e muito triste, porque eles haviam brigado logo antes da batida e tinham discutido sobre separação. Eu e meus irmãos estamos até hoje muito deprimidos. Colocamos embaixo da árvore de natal uma foto de nossa mãe, sorrindo, como sinal do único presente que queremos neste ano e, também, o melhor presente de nossas vidas: a nossa mãe de volta. ”
Após finalizar a leitura, Laura disfarçou as lágrimas e retornou ao seu lugar, com a classe e a professora em silêncio. De súbito, um menino retraído tomou fôlego e começou a bater palmas, sendo logo acompanhado por toda a turma. A professora também acompanhou as palmas e havia notado, por um instante, que praticamente todos pediam bens materiais, equipamentos eletrônicos como MP3, MP4, Ipod, brinquedos, roupas e outros adereços, quiçá por influência das exacerbadas propagandas de Natal. No fim do ano, os centros comerciais ficam repletos de pessoas que vão e vêm, no afã de comprarem bens efêmeros, mas o que dizer sobre o que não tem preço?
E cada data que poderia ser relevantemente humana acaba se tornando, por repetidas vezes, apanágio para o consumismo desenfreado, sob a égide do marketing capitalista. Assim, algumas famílias ficam cheias de presentes materiais, mas tão vazias interiormente que todos os atos eufóricos passam pelos prazeres gastronômicos da ceia natalina, e não raro, regada às discussões proporcionadas pelo excesso de vinho. Os meios de comunicação de massa, com poucas exceções, não divulgam o significado inerente ao Natal, mas apenas as ditas “ofertas” tecnológicas de um materialismo avassalador e neuroticamente impositivo.
Instigada, assim, pelo fato de pelo menos uma aluna ter-se manifestado de uma forma mais emotiva, a professora aproveitou o ensejo para tentar discutir com as crianças o significado do Natal, bem como a história por trás dos símbolos e das tradições. Ela tentou resgatar, portanto, o valor humano intrínseco aos eventos natalinos, de modo a desenvolver um pensamento mais profundo com as crianças, embora não fosse um exercício fácil.
Ao término daquela aula, a estudante Laura retornou à sua casa com a convicção de que havia proporcionado aos colegas uma outra perspectiva sobre o Natal. No dia 25 de dezembro, enquanto poucos comemoravam com fartura em suas residências, inúmeras pessoas pelo mundo afora sofriam diversas formas de adversidades, nas ruas, nos asilos, nos presídios, nos orfanatos, ou nos hospitais, como Laura e sua família. Todos faziam orações para que a mãe saísse daquela situação de coma. Até o pai, que sempre fora cético, fazia sua prece interior.
Quebrando o silêncio no quarto do hospital, o irmão caçula teve uma idéia inusitada: chegou bem próximo ao ouvido de sua mãe adormecida e passou a cantar, bem baixo, a música “noite feliz”, por ter sido a primeira canção que surgiu em sua mente. Laura e o outro irmão imitaram o menino e, como num coral improvisado, passaram a cantar aquela melodia, sem pieguices, mas com nítido afeto.
Inesperadamente, o equipamento que monitorava o estado da mãe passou a indicar oscilações. Emocionado, o pai logo chamou as enfermeiras, que presenciaram o fim do coma daquela mulher, inclusive para total surpresa dos médicos. De fato, havia sido o melhor presente natalino de toda aquela família, maior que todos os possíveis sonhos de consumo. Enfim, o que não é palpável materialmente torna-se, no íntimo do ser humano, o mais caro e substancial à alma.
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